4ª noite do Festival de Brasília 2009

O Homem Mau Dorme Bem, de Geraldo Moraes:

Fragmentos e enlaçamentos da desmemória.

A trama em O Homem Mau Dorme Bem se apresenta envolvida no sistema fragmentado desenvolvido pelas formas do filme de multiplot, de maneira a promover a intersecção dos personagens, independentemente se estes atuam em tempos diferentes entre si. Desta forma, o filme se obriga a estabelecer uma trajetória principal, para onde desembocam as não menos importantes histórias adjecentes, e ao redor de onde orbitam estas histórias. Ou seja, esta estrutura narrativa estabelece um eixo local e temporal, e a partir dele é possível especular sobre a existência de uma memória e de um lugar externo à seu cenário.

O que faz o filme de Geraldo Moraes, entretanto, é embarcar em um caminho desconhecido por ele mesmo e dentro de um fluxo que não controla. Vai de carona com Wesley, um camelô que foge de uma inspeção da polícia, briga com seu fornecedor de produtos e acaba em um posto de gasolina. Neste cenário, o filme descobre uma trama mais marcante, a de Rita, que espera pela volta do homem que ama, e esta passa a ser então seu eixo narrativo. A história de Wesley acaba sem nunca ter tido uma razão de existir.

Assumindo então uma identidade, O Homem Mau Dorme Bem mesmo assim segue caindo em ciladas no caminho que sequer havia desbravado. Tenta promover uma expectativa e uma surpresa para o desenlace de sua trama, mas não faz nada além de anunciar previamente o que está por vir, e com isso justifica a falta de naturalidade com a qual este fato acontece. O filme fracassa ao tentar criar um clima de mistério, estabelecido ao redor de um borracheiro que se esconde por trás de barba e boné – é fácil vinculá-lo ao amante de Rita, deixado em aberto no passado e sem linques com a narrativa principal. O que mais surpreende são as lacunas históricas que promoveram a mudança radical de um palhaço carismático para um borracheiro cruel. Mas o filme, esquecido por não ter desenvolvido razoavelmente esta amarra, abre um parêntese para o fragmento de memória de um borracheiro sem passado motivado pela necessidade de vingança, e que espera concretizá-la para finalmente dormir bem.

No fim, o filme é um observador de tudo isso e seu grande mérito é estar no lugar certo para uma espécie de “furo”. Quando ele age desta forma, é justificável que tudo aconteça em um campo externo à suas capacidades; porém, quando não mede esforços para transpor seu curso, o filme perde a coerência e rateia, porque o espaço é amplo demais para ser armazenado ou reduzido. O Homem Mau Dorme Bem enlaça vidas paralelas (aliás, com uma bela montagem), porém, enquanto conta sua história, esquece de detalhes significativos, se esquece porque mencionou certas passagens, certos nomes. Pode-se dizer que é um causo mau contado, mas antes fosse inventado e floreado, seria ao menos um crível exercício de imaginação. Para um filme, essa falta de fluidez pode não apontar para uma inabilidade, mas certamente é uma marca de displicência.    

 Curtas: Verdadeiro ou Falso, de Jimi Figueiredo e Recife Frio, de Kleber Mendonça Filho

Verdadeiro ou falso confunde seu tema e suas ferramentas, e dessa forma é difícil distinguir nele um recorte contextual de uma ilustração. Ao não determinar seus caminhos e os meios que usa para neles transportar seu filme, Jimi Figueiredo possibilita a este uma leitura dúbia. O próprio título do filme permeia nestas questões: se o cinismo condiciona uma relação amorosa qualquer, o título determina um tema; se a relação amorosa em questão é encaminhada pelo cinismo, o título determina um meio.

O filme ganha força quando ressalta a relação do casal em todas as suas possibilidades de mentira. Os argumentos se consolidam quando o discurso sai do conteúdo e se torna metalinguístico, na interpretação pastelão que os personagens fazem de si. Se nem mencionasse situações-exemplo de verdades ou falsidades cotidianas, o filme se estruturaria de forma consistente em seu discurso.

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 Recife Frio imagina uma situação improvável e legitima a situação vigente a partir de seu oposto. Kleber Mendonça Filho estabelece uma relação de causas e consequencias de maneira tão efetiva, partindo de pontos coincidentes das situações real e imaginada, que expõe às claras questões sociais e comportamentais da cidade do Recife. Assistindo à Recife Frio, é muito difícil imaginar um caminho diferente do fantástico para conseguir alcançar a meta do questionamento social de forma tão triunfal.

Published in: on 7 de dezembro de 2009 at 17:06  Deixe um comentário  

3ª noite do Festival de Brasília 2009

Quebradeiras, de Evaldo Morcazel

(por Willian Kroll)

O longa foi exibido pela primeira vez dia 19 de novembro, na mostra competitiva do Festival de Brasilia. Tem como personagens principais as quebradeiras de coco do interior do país, elas são mostradas no seu cotidiano, muitas vezes monótono de quebrar como. São mostradas também realizando outras atividades cotidianas, como o banho, a feitura das refeições, e as vezes são mostradas também cantando. Em algumas músicas são mostrados também homens, únicos episódios em que eles aparecem.

O filme é lento e parado, todos os planos são estáticos, precisamente construídos, é um documentário etnográfico, observacional, mas intervencionista. Não existe nenhuma entrevista, nenhum diálogo, a voz só é escutada durante as cantorias, mas fica claro o trabalho da equipe sincronizando, organizando e até ensaiando o movimento das personagens, a busca do plano mais bonito e perfeito. O expectador permanece distanciado, não acontece interação, identificação, apenas contemplação, pois o lugar é bastante bonito, a cultura mostrada parece interessante rica, mas permanecemos distantes. Um filme bastante sensitivo, as imagens são incremetadas pela trilha sonora original (Thiago Cury e Marcus Siqueira) sem ser redundantes, tudo muito perfeito, e as vezes artificial, também cansativo, muitos planos abertos e distantes onde nada ou quase nada acontece, contrastando com outros trechos onde planos detalhes parecem ensaiados e pontuados pela música. Uma obra de arte que se construiu como obra de arte, muito pouco além disso.

O filme foi dirigido pelo cineasta e jornalista Evaldo Mocarzel, 49 anos, é o seu 10º filme, que ele considera ser um divisor de águas em sua carreira, conta que não gostava de filmes muito intervencionista, era contra trilha sonoras em documentários desse tipo, acreditava ter um estilo no seu fazer, e com esse filme decide mudar, buscar influências em documentários mais experimentais, está em busca de um novo estilo. Parece ser bastante pragmático, faz algumas escolhas no filme, como por exemplo não utilizar de nenhuma palavra falada, e a partir daí constroi o seu filme, o que algumas vezes pode acabar engessando demais o produto final.

Curtas: Dias de Greve, de Adirley Queirós e Ave Maria ou Mãe dos Sertanejos, de Camilo Cavalcante

Nessa mesma noite do Festival estreiaram dois curtas, um deles foi a ficção Dias de Greve, história que conta como se corportaram os funcionários de uma pequena metalúrgicadurante alguns dia em que se decidem de greve. As preocupações de sofrer descontos salariais dos dias parados, de como se comportar no dia-a-dia em que estão de greve, se podem aproveitar seu tempo para realizar outras atividades, até para se divertir, isso sem se sentir culpados por possíveis consequências da greve. Fazem reuniões, durante a noite, meio na penumbra, escondidos, como se o movimento fosse ilegal, proibido, lidam com o sindicato, temem ser manipulados. No final voltam a trabalhar, mas não são punidos, sentem a impotência perante o sistema opressor e vão tocando a vida do jeito que dá. Filme produzido na cidade de Cielândia no Distrito Federal, segundo curta produzido por esse grupo, o primeiro inclusive premiado no Festival de Brasília. O diretor Adirley Queiroz disse que queria que fosse uma produção com a identidade da região por isso foi usado uma equipe local, tirando algumas funções técnicas. Filme bem feito, narrativa clássica, mas bem construido, apesar de pecar em alguns aspectos da linguagem, principalmente com relação interpretação, que algumas vezes fica aparentemente artificial. Interessante também como mostra a cidade, periferia de Brasília, lugar para onde são segregados os mais pobres que não tem condições para morar na capital e que tem que lidar com as vantagens e desvantagens que tudo isso proporciona.

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O segundo curta da noite foi Ave, Maria ou a mãe dos sertanejos de Camilo Cavalcante e se passa numa cidade do interior do sertão, as 18h, quando os sinos da igreja badalam e no rádio toca a música Ave Maria. Filme tranquilo, que não efatiza os sofrimento do Sertão, não aponta as desigualdades e a exploração, mas mostra como o povo forte, religioso, como se comporta na simbólica hora em que termina o trabalho e todos voltam para suas casas para comer e recuperar as forças para mais um dia de trabalho, com a benção da Ave Maria. Bonito, poético, na luz do entardecer, com a sanfona chorada de fundo, sensitivo e distanciado, contemplativo, mas sem metáforas mirabolantes, linguagem que funcionou bem no curta. O já premiado Camilo Cavalcante contou que foi um filme bastante coletivo, produzido sem a forte hierarquia comum em alguns sets. Foram feitas oficinas com a comunidade local, tentou-se trabalhar bastante com os moradores para tentar evitar ao máximo o olhar extrangeiro. Filme simples sobre um povo simples, de cultura tradição e religiosidade.

Published in: on 4 de dezembro de 2009 at 15:38  Deixe um comentário  

2ª noite do Festival de Brasília 2009

Perdão Mister Fiel, de Jorge Oliveira:

Um filme é o que ele contém.

O cinema age com nobreza quando exerce a função social de esclarecimento, quando incita a população a lutar por seus direitos de liberdade. Principalmente quando retrata as obscuras questões da repressão ditatorial no Brasil e os assassinatos aos “inimigos internos” efetuados por seus órgãos, o cinema trata sua própria atitude didática como dever de cidadania. O filme Perdão Mister Fiel, de Jorge Oliveira, exibido na segunda noite do 42º Festival de Brasília, mesmo sendo completamente utilitarista, alcança todos os objetivos que propõe a si nestes termos sociais.

Perdão Mister Fiel é estritamente um filme de catarse. Utiliza de todos os apelos em seu alcance para extrair do público a comoção e, de tanto massacrar neste recurso, reduz a si mesmo a esse objetivo. A questão é que o filme se foca nesta meta em detrimento de um desenvolvimento estético mais pertinente, recusa que centra a mensagem apenas em seu conteúdo e a torna em si mais enfática, ao invés de acolher como um todo o espectador numa atmosfera tocante.

Jorge Oliveira explora as possibilidades da linguagem televisiva de massa. A partir de referências como o programa Linha Direta, adota como estrutura a alternância entre depoimentos e dramatização. A escolha, segundo ele, é pertinente porque supre a carência de imagens de arquivo do personagem principal, Manoel Fiel Filho, um operário que foi morto ao ser torturado nos porões da ditadura. Entretanto, o diretor deixa claro que deseja aproximar o filme do público e usa o recurso para envolver, temendo o desinteresse do espectador.

Ainda com este intuito, Perdão Mister Fiel utiliza, nas dramatizações, o recurso de colorir no enquadramento apenas um item, enquanto todo o resto é preto e branco. O uso é injustificável. Para Pedro Zoca, co-diretor, o elementro destacado atrai a atenção do espectador para a sua importância na cena e a complementa poeticamente pelo contraste de cor e ausência dela. Porém, entre caminhos, macacões e flores coloridos, o filme redunda no dramático. A tentativa é tão desesperada que expõe as deficiências técnicas dos realizadores, que, quando bombardeados por considerações sobre sua empreitada cinematográfica mal sucedida, se defendem ariscamente justificando como “uma opção de roteiro” e desconsiderando qualquer análise sobre a forma, já que o conteúdo está ali para ser pensado, e só ele.

O filme contém de fato – entre entrevistas desnecessárias e de falas repetidas por diversos meios que trazem episódios ocorridos no período militar – uma presença destoante: a de Marival Chaves, ex-agente do DOI-Codi. Apesar de seus depoimentos possuirem esses sim algo de revelador – e fazerem o filme ascender para longe do mais-do-mesmo -, a importância do depoente faz de Manoel Fiel Filho um coadjuvante, quase uma escolha aleatória dentre tantas vítimas da mesma causa. Isso é revelado pelo curso da montagem, que abandona o personagem depois da dramatização de sua morte (que acontece antes da metade do filme) e passa a se agarrar apenas no contexto. E não satisfeito em se concentrar em uma abordagem específica – mesmo que já estivesse confuso – Perdão Mister Fiel traz ainda à tona a discussão sobre a responsabilidade do imperialismo dos Estados Unidos na instalação da ditadura em toda a América do Sul. Deve ser esta a justificativa da palavra mister no título do filme, apesar de o perdão jamais ter sido pedido ou reconhecido.

Se Perdão Mister Fiel não é um filme bem sucedido – chegou a ser questionado sobre o uso do cinema como meio para a abordagem. Ainda mais, levantou-se a crítica sobre o merecimento deste filme ser de fato chamado filme -, ao menos triunfa no alcance de sua mensagem; segundo o diretor, uma exibição prévia fez com que o caso de Manoel Fiel Filho fosse reaberto pela Justiça. Por isso pode-se dizer que Perdão Mister Fiel é um filme de missões sociais, e ele as cumpre.

 Curtas: Bailão, de Marcelo Caetano e Água Viva, de Raul Maciel

Bailão utiliza de duas formas fundamentais para transpor o espectador para a sensibilidade de seus personagens: a voz off e a câmera observadora. Desta forma efetiva, o diretor tenta eliminar tabus e questões morais para construir cumplicidade nesta relação público-filme.     A opção de linguagem à qual se recorre Marcelo Caetano constrói um anonimato abrigador à seus personagens, e consequentemente uma certa dúvida sobre suas imagens, se são pessoas que ilustram depoimentos ou se são os donos das vozes que publicamente se recorrem ao silêncio. O filme – que retrata memórias de uma homossexualidade reprimida no passado – faz manter a idéia submundana de quem narra, e mesmo assim difunde em si mesmo um obscuro sofrimento claustrofóbico de quem clama pela própria desmarginalização.

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Água Viva opta pela caminho da narratividade explícita para ser mais efetivo no aspecto “sensorial” que almeja para si, mesmo desmembrando partes de sua estrutura para subtituí-las por conexões interpretativas livres. Tal escolha permite uma abstração dentro de um contexto estabelecido, e não de um completamente vago, o que exigiria certa interação de referências entre autor e leitor para haver compreensão. Entretanto, Raul Maciel alarga as lacunas de forma a não permitir uma coerência narrativa e dar espaço a uma experiência sensível. Esta acontece de fato, talvez não na intensidade em que deseja o diretor, nem da forma ideal, já que há necessariamente uma verticalização da experiência em detrimento da coerência; mas sim de forma a compor silêncios e pontuar fatos, como o curso de um rio, em que se sente textura, sabor e força.

Published in: on 1 de dezembro de 2009 at 18:16  Deixe um comentário  

1ª noite do Festival de Brasília 2009

Filhos de João: O Admirável Mundo Novo Baiano, de Henrique Dantas:

Uma linha que se perfura.

Os documentários musicais costumam seguir um padrão cronológico da biografia que pretendem reportar, como se caminhassem em uma linha, e somente sobre ela, para amarrar fatos pontuais e essenciais no curso da vida do artista ou da banda em questão. Filhos de João não recusa essa estrutura, muito pelo contrário, a adota para manter a coerência dentro do tema que apresenta; o antes e o depois da “adoção” dos Novos Baianos por João Gilberto e sua determinante influência no som revolucionário que ali nascia.

No documentário de Henrique Dantas, os Novos Baianos são uma exemplificação de um argumento, de uma tese (como o próprio diretor chamou) da qual consiste de fato o filme: a influência de João Gilberto na nova cultura baiana. O mediador desta interação é Tom Zé, baiano que, como um bom tropicalista, também é filho de João. Sua filosofia peculiar dispensa qualquer historiador da música e dá ainda mais força ao discurso do diretor. Tom Zé não só alterna fatos com comentários relacionados como dita os caminhos do filme, como se ele mesmo selecionasse as imagens convenientes na montagem, de acordo com a propriedade de seu discurso. É dessa forma que ele apresenta o documentário para além das linhas biográficas dos Novos Baianos, se fazendo instrumento para um mergulho mais aprofundado do tema principal.

Não se trata de um subtema, e sim de um intratema. Não é também algo que se desbrave durante o filme, ou que se infira deste, mas sim uma idéia já coerentemente apresentada no próprio título. Assim, dentre tantas possíveis exemplificações, o tema do filme também remete a um sistema.

É estranho que uma banda fundamental para a construção da identidade musical brasileira seja posta a parte em opção a uma estrutura entranhada no filme, mas não é definitivamente o que se faz em Filhos de João. Henrique Dantas faz uma reverência fanática ao grupo essencialmente baiano, retrata sem titubeios toda a trajetória do grupo, suas irreverências, suas peculiaridades e disparidades. O espectador se descontrai como quem ouve um causo e depois uma bela canção.

Assim, Filhos de João não segrega o entendimento do filme àqueles que são capazes de perceber essa abrangência. O assunto em si é um fluxo tranquilo tanto para conhecedores quanto para os que nunca ouviram falar em Novos Baianos, mesmo que seja muito difícil nunca ter ouvido alguma de suas canções. Propõe, desta forma, níveis de compreensão do filme, diferenciadas de acordo com as vivências do espectador, o que é uma forma variada de promover a narratividade individualmente.

Curtas: Homem-bomba, de Tarcísio Puiati e Os Amigos Bizarros do Ricardinho, de Augusto Canani

 O imaginário é o tema que permeia o curta-metragem Homem-bomba, porém não é tratado de forma a manter uma coesão estrutural dentro da narrativa que propõe. O filme se apresenta com duas crianças que supostamente ocupam posições de guarda no sistema do tráfico de drogas – e a suposição aqui é no que não se pode inferir da história, uma vez que nada acontece para que isto seja provado. A idéia continua não garantida na medida em que os meninos trocam perspectivas e contam histórias, todas floreadas com muito da fantasia infantil, recheadas de referências culturais e de inocência, o que suscita o riso e a afeição pelos personagens.  

Esta indefinição do ponto de partida abre para uma expectativa, instiga para um caminho em que se almeja uma confirmação. Entretanto, o filme desemboca para outras e maiores possibilidades não aprofundáveis, e as tentativas de se estabelecer uma unidade aos fatos não passa da especulação (em dado momento, uma das crianças sai para uma operação enquanto a outra a aguarda na expectativa de sua sobrevivência). Certamente, tudo acaba justificado pela imaginação.

No momento final, o menino que saiu confirma sua morte e reaparece para o amigo. A marca simbólica do sangue em seu peito ainda mantém a indefinição dos fatos, mas encaminha a narrativa para outro enfoque, o drama. Não só pelo sofrimento e pela confusão do menino que o aguardava, mas também pelo fatalismo e a falta de perspectiva enraizadas na desesperança das crianças do tráfico. Mas falta entre uma atmosfera e outra um enlace, há um vácuo. É um salto digno de uma brincadeira de criança, que se apressa para o momento de ação e seu desfecho.

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Amigos Bizarros do Ricardinho traz consigo, antes de tudo, uma carga regional inerente, como se o Rio Grande do Sul fosse uma referência contingente nos filmes gaúchos. Dessa forma, assiste-se o filme fazendo conexões com a linguagem de Jorge Furtado (principalmente em Ilha das Flores) e contrapõe-se o humor requintado à cisudez do povo do sul, qualidade reduzida que foi ressaltada durante o debate, no dia seguinte à exibição.

O filme amarra conteúdo e continente de forma que dialoguem em mão dupla. Ricardinho é arte-finalista estagiário de uma agência de publicidade e vive na eminência da demissão, já que o dono da agência têm pendências pessoais com a família do personagem. A linguagem de montagem e a saturação de cores de fotografia e arte remete à uma forma publicitária, como se a própria agência que é cenário na história pudesse produzir ela mesma o filme. Esse argumento é corroborado quando, no filme, o arte-finalista-chefe reúne todas as histórias bizarras contadas por Ricardinho e as publica para toda a agência. Na narrativa, os causos de Ricardinho já são produto, como um pré-roteiro que seria avaliado e roteirizado pelo redator da agência, e depois finalmente filmado. Além disso, o filme é não só baseado em fatos reais como o seu personagem é o próprio ator, cujo nome é Ricardo Lilja, que aliás é um ator amador que faz ele mesmo de forma muito crível.

Dessa forma, Amigos Bizarros do Ricardinho traz para si uma consistência que estrutura a narrativa e garante sua fluidez. Seu humor requintado e suas histórias extraordinárias certamente contribuem para uma coesão completa de forma e conteúdo, mesmo que até na conquista do público se utilize o artifício publicitário.

Published in: on 30 de novembro de 2009 at 11:59  Comments (1)